Hoje em dia é comum ouvirmos de “cristãos” que não estamos debaixo da lei, mas da graça, a fim de justificarem os seus desvios ao santo padrão objetivo de obediência estabelecido por Deus nas Sagradas Escrituras. Tal afirmação é fundamentalmente derivada de uma errônea interpretação das palavras de Paulo, escritas aos crentes de Roma: “Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e sim da graça” (Romanos 6:14 RA).
Tais “cristãos”, infelizmente a imensa maioria assim denominada hodiernamente, estabelecem uma dicotomia intransponível entre lei e graça, entre lei e evangelho. Para eles, o evangelho é substancialmente distinto da lei, e totalmente incompatível com ela.
Apenas para ilustrar esse fato, alguns dias atrás eu estava assistindo um programa em uma rede de televisão “evangélica”, a RIT TV (Rede Internacional de Televisão), emissora controlada pela Igreja Internacional da Graça de Deus, cujo líder é o “missionário” R. R. Soares, em que dois dos apresentadores foram entrevistar uma “bispa” da igreja Renascer em Cristo, cujo nome não lembro no momento, ocasião na qual um deles indagou à bispa se ela conhecia bem as Escrituras, recebendo resposta afirmativa.
Então, o apresentador perguntou à “bispa” quais eram os dez mandamentos. Incontinenti, ela respondeu que nos dias de hoje, da graça, nós temos apenas dois mandamentos, certamente fazendo alusão às Palavras de Jesus em Mateus: “... Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:37-39 RA).
O apresentador insistiu, e a bispa desconversou, mudou de assunto, desviou o foco da conversa, etc. Então, com muitas risadas, o apresentador insistia: “não enrola, bispa”, quais são os dez mandamentos? A “bispa” continuou desconversando, e terminou o quadro sem citar textualmente os dez mandamentos encontrados nos Livros de Êxodo e Deuteronômio, dando clara indicação de não conhecê-los, apesar de sua própria afirmação no início da entrevista de que conhecia bem as Escrituras.
O exemplo dessa “bispa” pode ser multiplicado aos milhares, e, infelizmente, aos milhões. A raiz de toda essa ignorância, sem dúvida, fundamenta-se no ensino equivocado da cessação da vigência da lei de Deus na dispensação do evangelho, como se os crentes do Antigo Testamente tivessem sido redimidos não pela graça, mas pelas obras da lei.
Antes de apresentar o que julgo ser uma correta e bíblica interpretação do significado pretendido pelo apóstolo tenho que dizer que, mesmo algumas pessoas pessoas pelas quais nutro grande admiração, na tentativa de combater os erros advindos de uma interpretação equivocada do versículo em questão, terminaram por também cometer erros na exegese da passagem. É o caso de Kenneth L. Gentry Jr., que escreveu:
Romanos 6:14 é a passagem “anti-teonômica” mais famosa. “Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça.” Essa é uma passagem Classe 4. observe duas coisas:
1. Paulo não está se referindo à Lei Mosaica, mas à lei-princípio para a salvação, isto é, ao legalismo. A Lei de Deus não é uma inimiga da graça de Deus, pois a Lei de Deus endossa a graça de Deus.
2. A frase “debaixo da lei” significa ser um escravo do legalismo. De acordo com o contexto, devemos ser “escravos da justiça”, pois estamos “debaixo da graça”.i
Há nas palavras de Kenneth Gentry uma verdade que deve ser destacada: “A Lei de Deus não é uma inimiga da graça de Deus, pois a Lei de Deus endossa a graça de Deus”. Contudo, estou convicto que ele chegou à uma conclusão totalmente enganada sobre o significado da expressão “debaixo da lei” como sendo sinônima de “escravo do legalismo”. Também nego que o vocábulo lei na passagem em comento se refira “... à lei-princípio para a salvação”.
Essa minha convicção advém de inteligência do próprio versículo, no qual Paulo afirma que o pecado não teria domínio sobre seus leitores justamente por eles não estarem “debaixo da lei”. É próprio do pensamento paulino, em especial na epístola aos Romanos, de que é a lei quem revela o pecado: “porque a lei suscita a ira; mas onde não há lei, também não há transgressão” (Romanos 4:15 RA). O mesmo apóstolo, na mesma carta, afirma: “... eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei; pois não teria eu conhecido a cobiça, se a lei não dissera: Não cobiçarás” (Romanos 7:7 RA).
Ademais, Paulo tinha por certo que “... a força do pecado é a lei” (1 Coríntios 15:56 RA), tanto que afiançou que “... o pecado, prevalecendo-se do mandamento, pelo mesmo mandamento, me enganou e me matou” (Romanos 7:11 RA).
O que tudo isso significa, então? O que significa estar debaixo da lei? Certamente, não significa não estar obrigado ao cumprimento, à observação, da lei. Não significa que a lei de Deus não é tão válida para os crentes da Nova Aliança quanto o era para os da Antiga.
A resposta ao significado da expressão “ não estais debaixo da lei” se encontra no fato de que “... a lei suscita a ira...”, porque “Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no Livro da lei, para praticá-las” (Gálatas 3:10 RA).
A lei suscita a ira porque exige perfeita obediência aos seus preceitos, e como nenhum homem descendente de Adão pode cumpri-la com a perfeição por ela requerida, segue-se que “... todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3:23 RA). Como “... o salário do pecado é a morte...” (Romanos 6:23 RA), então todos os que pecaram são dignos de morte eterna.
Mas há um vínculo inquebrável entre a morte eterna e a morte espiritual, sendo aquela o ponto culminante, o afastamento definitivo e irremediável do pecador de Deus. Mas, para que um homem chegue à morte eterna ele deve permanecer entregue ao seu próprio curso, que naturalmente o levará ao banimento da face do SENHOR.
Mas como a Escritura, em especial as Escrituras paulinas, enxergam esse caminhar do homem segundo a sua própria natureza? Que ela mesma responda:
“Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si; pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém! Por causa disso, os entregou Deus a paixões infames; porque até as mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à natureza” (Romanos 1:20-26 RA).
As palavras bíblicas acima nos ensinam um grande princípio: o desprezo pelo conhecimento de Deus, o qual é revelado na própria Criação, traz consigo o juízo divino, de forma que os desprezadores são entregues à um estado ainda mais degenerado em seu viver, viver esse que só pode ter como padrão objetivo de avaliação a lei de Deus. Ou será que Paulo tem algum outro padrão quando fala que Deus entregou os homens à imundícia, pela concupiscências de seu próprio coração, e que “os entregou Deus a paixões infames”? Por acaso o apóstolo que escreveu que é a lei quem revela a concupiscência não teria em mente que a imundícia e as paixões infames dos homens só são assim consideradas em relação à lei de Deus?
Se homens que desprezaram a revelação natural, a revelação geral de Deus, receberam tal juízo, o que dizer daqueles que desprezam a sua revelação especial, a sua Lei? Não seriam dignos, tais, de juízo semelhante, ou mesmo mais rigoroso? Ou a Lei não traz conhecimento de Deus? Deus é bom, a sua lei é boa; Deus é justo, a sua lei é justa; Deus é santo, a sua lei santa; Deus é espírito, a sua lei espiritual. Isso não é mais do que suficiente para atestar que a lei traz conhecimento dos atributos de Deus?
Ora, mas o juízo pela quebra da lei é justamente ser entregue às próprias paixões, e ser entregue às próprias paixões é revelação da ira de Deus. Paulo começa a seção que discute essas coisas afirmando: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (Romanos 1:18 RA). E como ele demonstra que essa ira se revela? Pelo fato de os desprezadores do conhecimento de Deus serem entregues à sua própria corrupção, “... a uma disposição mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes” (Romanos 1:28 RA).
Na carta aos Efésios, Paulo deixa esse seu pensamento bem explícito. Senão vejamos:
“Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; entre os quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais” (Efésios 2:1-3 RA).
Nessa passagem, Paulo assevera que quando os efésios estavam mortos espiritualmente, em seus pecados e delitos, eles andavam segundo o curso do mundo, segundo Satanás, segundo as inclinações da carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos. Paulo descreve os que assim andam através de dois hebraísmos, os quais são sinônimos: “filhos da desobediência” e “filhos da ira”.
Essas expressões indicam que por causa do pecado de Adão, por justo juízo divino, a humanidade foi entregue à prisão da sua própria corrupção. Por isso, a descendência de Adão pode muito bem ser chamada de “filhos da desobediência”, de “filhos da ira”.
Ocorre, que Paulo faz uma ressalva em relação aos seus leitores originais: “... e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais”. O que isso significa? Que eles, apesar do estado presente (na época em que lhes foi escrita a carta) de vida espiritual, antes, apresentavam as mesmas características quanto à natureza decaída das pessoas não-crentes. Devemos levar em conta que essa passagem se encontra em um contexto maior em que Paulo trata da eleição divina. Logo, os efésios, apesar de eleitos, quando ainda não-regenerados apresentavam a mesma natureza corrupta, característica dos “filhos da ira”, dos não-eleitos.
Mas não devemos concluir disso que eles eram odiados pelo SENHOR, como Esaú, pois logo em seguida Paulo teve o cuidado de escrever:
“Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por ca fusa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, —pela graça sois salvos, e, juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus; para mostrar, nos séculos vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco, em Cristo Jesus” (Efésios 2:4-7 RA).
Há uma clara distinção entre dois grupos: os eleitos e “os demais”, os não-eleitos. O primeiro grupo fora vivificado em Cristo Jesus, recebeu vida espiritual Nele, tendo como causa o grande amor de Deus, a fim de que a suprema riqueza da sua graça fosse revelada em seus eleitos através dos séculos (eternidade).
Portanto, um grupo, não obstante a sua obstinada violação da lei de Deus, foi salvo do ciclo vicioso de quebra/maldição da lei, foi liberto da sua própria corrupção, e é exatamente esse o significado de “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados...”.
Essa libertação dos eleitos desse ciclo de desobediência e corrupção já fora prevista nos profetas: “Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis” (Ezequiel 36:26-27 RA).
Percebe-se das palavras do profeta Ezequiel que a obediência à lei de Deus é precedida da regeneração, da obra regeneradora do Espírito, uma obra da graça de Deus, da qual o homem é apenas sujeito passivo.
Consequentemente, a antítese traçada por Paulo, em última instância, é entre ira e graça. Os que foram destinados para a ira, por causa dos seus próprios pecados, embora Deus assim o tenha decretado, são mantidos na prisão das suas concupiscências, e assim acumulam cada vez mais ira para o dia do juízo. Os eleitos, todavia, por causa de Cristo, são salvos da maldição da lei, pois a “... graça...” lhes “... foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos” (2 Timóteo 1:9 RA).
O resultado prático da eleição é uma vida de santidade, contrária àquela anterior à regeneração:
“... quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupiscências do engano, e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Efésios 4:22-24 RA).
Mas, qual a razão que torna possível o regenerado viver uma vida conforme a requerida pelo apóstolo? Ele responde, no mesmo contexto: “Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados;” (Efésios 5:1 RA). É o fato de que os regenerados estão sob o amor, sob a graça de Deus, que os torna aptos a serem imitadores de Deus. Os “filhos da ira” só podem andar segundo a inclinação da carne, mas “os filhos amados” podem e devem andar segundo o Espírito.
A questão toda, portanto, reside na antítese ira e graça. Estar debaixo da lei é estar debaixo da ira, é estar obrigado a cumprir as exigências da lei sem a operação sobrenatural do Espírito. O corolário lógico dessa situação é a maldição.
Sendo assim, julgo que Kenneth Gentry chegou a um resultado interpretativo equivocado, ao concluir que o termo “lei” na passagem em comento é sinônimo “lei-princípio para salvação”, e estar debaixo da lei é estar debaixo do legalismo.
Tanto uma análise exegética quanto teológica demonstra que “lei” no contexto é a lei de Deus, e estar debaixo da lei é estar debaixo da sua obrigação à parte de Cristo, à parte dos méritos justificadores de Jesus, e da obra interior do Espírito que interioriza a lei de Deus e que torna os filhos de Deus aptos para a obediência dos preceitos do SENHOR.
Essa obra interior, a regeneração, assim como a obediência da lei dela resultante está no cerne da promessa evangélica. Logo, não há nenhuma incompatibilidade entre a lei e o evangelho.
Como já salientei, o que há é uma antítese entre dois grupos, um objeto, desde a eternidade, da graça de Deus, e outro destinado à ira divina, objeto do seu desprazer eterno, porque tanto o amor como a ira de Deus são eternas, como exige a divindade de Yahweh.
Estar debaixo da lei é estar debaixo da sua vigência sem Cristo e sem Seu Espírito, restando apenas o juízo pela sua violação.
Estar debaixo da graça é estar debaixo da obrigação de obediência à lei do Senhor, todavia gozando da justificação em Cristo, sabendo que “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Romanos 8:1 RA). A imperfeição da obediência, por causa do pecado que ainda habita neles, dos servos de Cristo não traz sobre eles a ira de Deus, haja vista que eles são objetos do amor divino, o qual terminará neles a obra que começou.
Não devemos e não necessitamos aceitar as reivindicações desse “cristianismo” apóstata, que advoga a cessação da vigência da lei de Deus, mas também não precisamos combater o erro com outro erro. A verdade nos basta.
Por Célio Lima.
iGENTRY, Kenneth L. A Lei de Deus no Mundo Moderno: a relevância contínua da lei do Antigo Testamento. Brasília: Publicações Monergismo, 2008, pp. 48-49.